SOFT LAW COMO NOVO PARADIGMA JURÍDICO

Comumente o termo soft law é conhecido no âmbito do direito internacional para se referir à flexibilidade pela qual os Estados negociam e se organizam através de resoluções, códigos de conduta ou recomendações não equiparadas ao direito formal hierarquizado e sancionador [1]. Sem tradução precisa para o português, seu significado se aproxima a “direito flexível”, um contraponto às normas duras do hard law.

Utilizado com reservas, soft law ainda é um marco jurídico negado por alguns autores como Prosper Weil ao afirmar sobre o conteúdo vago e a forma indefinida do soft law, considerando-o uma falácia por não existirem outras compreensões além do direito/não direito. Para Jan Klabbers, o soft law deve ser descartado por inconsistências em sua origem e por não se constituir em práticas jurídicas ou estatais consolidadas [2].

Há mais críticas a respeito do soft law. Desde a excessiva liderança anglo-saxônica à legitimidade no processo de elaboração das regras (pode ser realizado qualquer grupo de pessoas – organizações governamentais ou não governamentais, instituições, associações), embora a adesão ao documento seja o fator determinante para consolidação de sua legitimidade.

A maioria dos questionamentos foram superados e cederam espaços para novas divergências: se hard law e soft law são complementares ou antagônicos, se soft law pode ser considerado uma das fontes do direito internacional ou um elemento que compõe o processo de criação das normas, dentre outros. Embora exista uma miríade de significados sobre soft law, certo é que não há dúvidas sobre sua existência e permanência no universo jurídico.

Um dos pais fundadores do termo soft law, Dupuy atribui-lhe caráter de fenômeno social, afirmando que representa uma criação normativa contemporânea, não unicamente relacionado ao ramo do direito internacional, mas estudado a partir dele por surgir nas mudanças estruturais das relações entre os Estados, após a II Guerra Mundial [3].

Dentre as razões para esse acontecimento encontram-se a criação e ampliação de organizações não governamentais (locais e globais), oportunizando uma estrutura de cooperação permanente e contínua para seus Estados-membros negociarem questões políticas, econômicas e sociais.

Ainda como razões, encontram-se a inclusão das perspectivas socio-jurídicas dos Estados componentes das organizações internacionais, bem como a necessidade de consensos jurídicos aplicáveis e ajustáveis a cada novidade proveniente do rápido desenvolvimento econômico e tecnológico global das últimas décadas.

Evans considera soft law como instrumentos de caráter não vinculativo utilizados nas relações internacionais contemporâneas pelos Estados e organizações internacionais [4], ou seja, entendimentos e diretrizes constituídos pelas referidas organizações, a partir das negociações entre seus Estados-membros, que aderem o texto, cujo as regras não são de cumprimento obrigatório.

Essa característica não vinculativa facilita “o desenvolvimento de ideias compartilhadas de negócios globais, com grande possibilidade de flexibilidade quando das incertezas dos negócios pactuados”35, fazendo com que esse processo de interação entre os entes gere possibilidade de mudanças na percepção dos interesses de cada um sobre um determinado assunto.

Ademais, segundo Shelton apud Gregório, os instrumentos de soft law têm os procedimentos de adoção, alteração e revisão mais rápidos, tornando-se mais adequados às questões que necessitam de revisões reiteradas.

Enquanto para alguns soft law ainda apresenta aspectos imprecisos, para outros, oferece aspectos multifacetados: soft law como instrumento regulatório e não norma jurídica; como etapa prévia à criação da norma jurídica tradicional; como fonte de direito; como opinião pública internacional; como norma de natureza interdisciplinar, pois versa sobre questões jurídico-políticas, econômicas ou morais.

Além do direito internacional, soft law se faz presente em outros ramos do direito como arbitragem internacional, ambiental e empresarial, caracterizando por abordar aspectos políticos, jurídicos, éticos, econômicos e sociais. Ainda se estende por diversas modalidades: conteúdo aberto de enunciados, inclusive com viés principiológico; conteúdo que dispõe sobre métodos alternativos de conflitos (arbitragem, conciliação e mediação), atos entre os Estados ou de organizações não governamentais que não sejam obrigatórios e instrumentos produzidos por organizações objetivando diretrizes de comportamento sociais (códigos de conduta), protocolos, guia de boas práticas.

São conhecidos exemplos de soft law: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), a conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o meio ambiente e desenvolvimento (ECO-92), os padrões adotados pela International Organization for Standardization (ISO), as recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre outros, temas que denotam a real importância do soft law [5].

Para os juristas Haocai e Gongde, os direitos humanos constituem um importante princípio para a política e governança, devendo o Estado assumir a responsabilidade de respeitar e proteger os direitos humanos, de forma que as relações entre o Estado e seus cidadãos sejam juridicamente reguladas. Para a proteção integral dos direitos humanos [6] é necessário o equilíbrio entre as normas jurídicas e as garantias institucionais, um equilíbrio alcançado entre a proteção provida pelo Estado e a demanda por direitos expressadas por seus cidadãos.

Dentre outros fatores, uma característica fundamental para existência desse equilíbrio é um sistema legal composto por diferentes conteúdos e formas de normas jurídicas adequadas ao dinamismo e à complexidade da engenharia social dos direitos humanos em sua efetividade: princípios gerais, normas jurídicas substantivas, procedimentais, públicas, privadas, nacionais e internacionais, ou seja, constante presença e interação entre hard law e soft law.

O pensamento sistêmico reflete na estrutura do soft law, na medida em que observamos a complexidade do viver contemporâneo no tratamento de questões globais, como a preservação do meio ambiente e o aquecimento global; a intersubjetividade a partir da visão diversificada de seus interlocutores, resultando em uma visão sistêmica das situações-problema; a capacidade de adaptação e celeridade que os instrumentos da soft law apresentam aos cidadãos do mundo, acompanhando o avanço da ciência e da tecnologia em tempo real.

Se não bastasse, o soft law atende ao rompimento do tradicionalismo jurídico ao desconectar o poder e a violência das normas duras, elaborando um conjunto de regras não vinculativas e de livre adesão; ao legitimar as comunidades e reconhecer como instrumento do soft law todo conjunto normativo produzido por instituições ou grupo de pessoas reunidas para aquele dado fim; ao proporcionar mudanças no curso da história na criação e desenvolvimento de novos direitos; além de adentrar no universo do cuidado e da ética nas relações humanas, a partir de suas primeiras declarações (DUDH) e de suas orientações principiológicas que dão o tom das relações humanas locais-globais. No hard law, as máquinas podem e vão performar melhor do que humanos, já no soft law, humanos utilizarão a tecnologia para se libertarem de processos repetitivos, para se dedicarem a uma Justiça mais qualitativa e menos quantitativa, mais humana e menos burocrática.

Feitas essas considerações, entende-se que soft law significa co-criar a Justiça com os indivíduos e organizações, prevenindo relações humanas que possam se comprometer e trabalhando com conceitos de ética e moral aplicadas não só ao processo, mas ao desenho social das relações tendo como viga central o cuidado [7].

Para saber mais sobre o assunto, confira o artigo científico “soft law como paradigma emergente da sociedade contemporânea” que integra a obra recentemente lançada “Cuidado e Cidadania: Desafios e possibilidades”, coordenada pelos autores Tânia da Silva Pereira, Guilherme de Oliveira e Antônio Carlos Mathias Coltro.

 

IPublicado primeiramente em Empório do Direito

Notas e Referências

[1] HAOCAI, Luo; GONGDE, Song. Balance and Inbalance in Human Rights Law. In: WEI, Zhang. Human Rigths and Good Governance. Leiden: Brill Nijhoff, 2016, p. 180-196.

[2] Klabbers, Jan. The Concept of Treaty in International Law. Netherlands: Kluwer Law International, 1996, p. 157-164.

[3] DUPUY, Pierre-Marie. Soft Law and the International Law of the Environment. Michigan Journal of International Law. Lansing, v. 12, n. 2, p. 420-435, 1990. Disponível em: http://repository.law.umich.edu/mjil/vol12/iss2/4. Acesso em: 15 jan 2019.

[4] BOYLE, Alan. Soft Law in International Law-Making. In: EVANS, Malcolm. International Law. 4a ed. New York: Oxford University Press, 2014, p.118-136.

[5] GREGORIO, Fernando da Silva. Consequências sistêmicas da soft law para a devolução do direito internacional e o reforço da regulação global. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Sao Paulo, v. 95, pp. 299-309, 2016.

[6] Termo que expressa uma visão integral/sistêmica dos direitos humanos, conforme dispõem os autores ao observarem as imbricações dos aspectos que os direitos humanos representam no desenvolvimento da cidadania. No original: “The respect and protection of human rights constitutes a basic goal of legal development, and since human rigths laws lies at the ‘core’ of modern law, the failure to respect and protect rights such as civil rights, political rights, economic, social and cultural rights, rights to life and development rights induced by unbalanced human rights law will not only damage the goals of human rights protection and legal development, but also prevent citizens from achieving the development and freedom they should enjoy”. O respeito e a proteção dos direitos humanos constituem um objetivo básico do desenvolvimento legal e, como os direitos humanos estão no ‘núcleo’ do direito atual, a falha em respeitar e proteger direitos como direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, direitos à vida e direito ao desenvolvimento de direitos induzidos por normas jurídicas não apenas prejudicarão os objetivos da proteção dos direitos humanos e do desenvolvimento legal, mas também impedirão os cidadãos de alcançarem o desenvolvimento e a liberdade de que deveriam gozar (tradução nossa). In: HAOCAI, Luo; GONGDE, Song, op. cit., p. 181.

[7] FERREIRA, Juliana; MAZURKIEVWICZ, Lígia; BARBOSA, Ruth. O soft law como paradigma emergente da sociedade contemporânea. In: Pereira, Tania da Silva. Oliveira, Guilherme. Coltro, Antonio Carlos Mathias. Cuidado e Cidadania: desafios e possibilidades. Rio de Janeiro: GZ, 2019.

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Sobre Relações de Poder e Organizações Sociais

O presente estudo se lança a averiguar no contexto histórico a distribuição do poder no contexto macrossocial, que implica diretamente na adaptação humana e organização social correspondente aos direcionamentos do poder institucionalizado. Pois, no contexto local, as ações e medidas coletivas ou individuais são de certa forma, atingidas pela deferência a uma lógica estabelecida e formalizada na sociedade, em todos os níveis e estruturas. Embora, não se possa estabelecer regra de comportamento duradoura, há uma determinação de durabilidade nas práticas coletivas.

Válido estabelecer diretriz de entendimento sobre poder, assim, recorre-se a Guareschi (2000, p.97) que compreende o poder como a “capacidade de produzir algo”. Assim, os indivíduos, de acordo com sua localização na sociedade possuem distintos graus, ou quantidade de poder. O autor trabalha, ainda, com o conceito de dominação que, de certo modo, está intrinsecamente ligado ao poder. Vez que, dominação é condição em que algum indivíduo é destituído de sua capacidade de produzir algo, em detrimento de outrem. A condição de subjugação frente aquele que concentra os poderes e age, produz, exerce e executa feitos segundo suas próprias necessidades.

Para Katz e Kahn (1987, p. 242) que analisaram diretamente as organizações sociais e os papéis que os elementos desempenham nos sistemas organizativos a ideia de poder se relaciona com autoridade, que confere legitimidade ao poder concentrado. Assim, “Poder é o potencial para influência, caracteristicamente apoiado por meios de coerção para cumprimento. […] autoridade é poder legítimo; é o poder que uma pessoa tem, em virtude de seu poder legal e socialmente aceito.” Neste sentido, a relação de poder é apontada com a proposta de influência, e, diretamente ligada a proposta de mando. Obviamente, o foco de estudo dos autores sendo as organizações sociais, podem implicar vertiginosamente na compreensão e no estabelecimento dos conceitos eleitos.

A questão da legitimidade que percorre as relações cotidianas, é descrita por Bauman (2014, p. 53) como “algo” pautado em “quem” tem o direito de traçar a linha divisória e definidora entre o legítimo e seu oposto. Perpetua-se, portanto, neste entendimento entre o legítimo e o ilegítimo um objetivo almejado nas lutas de poder. Contudo, na atualidade, estão permeadas pelo “adiaforismo”, que para o autor se refere a condição de dispensa de qualquer avaliação ética ou segurança moral. Contemplam-se neste contexto, as paixões exacerbadas pela novidade, que dará espaço a outra novidade, que por sua vez dará espaço a outra novidade.

Assim, a que se considerar que as relações de poder estruturadas na ação cotidiana civil, social ou política, e, entrelaçadas na microfísica das organizações sociais, também estão embebidas da característica de provisoriedade imperante na era Pós-Moderna. Para Bauman (2014, p. 59) o momento que vivemos corresponde a uma contínua liquidez das relações, das propostas e da ausência de busca pela verdade. Por mensagens breves e instantâneas ocorrem “viralizações” de “curtidas”, que são provisórias, mas disponíveis aos indivíduos. Há uma contínua busca por novidades e um apelo às crenças como codificadoras de fatos.

As instituições, que podem ser descritas como organismos se caracterizam por perdurarem no tempo, independentemente, de quem as tenha criado e classificam os poderes salutares a regência dos agrupamentos e da sociedade.  Ou seja, este ente dotado de permanência em seu sentido estrutural, seja físico ou abstrato, de cunho comercial ou política, consolidam em seu cerne a organização, planejamento e distribuição do poder.

Os autores Capra e Luisi (2014, p. 387) utilizam abordagem sistêmica para demonstrar que há uma configuração denominada de padrão de organização, que se trata da fôrma que permite a adaptabilidade e o trânsito orientado dos diferentes elementos reunidos para determinada finalidade. Uma organização é como um sentido para o qual os elementos são aglomerados, podendo ser diferenciada como estrutura, mas que mantém este sentido originário dado pelo padrão de organização.

No caso de um sistema social, é necessário que se tenha atenção para a característica da autonomia dos elementos de um sistema, ou de uma instituição. Também há uma expressão de padrão de organização, facilmente, pode-se encontrar características semelhantes que identifica uma igreja, ou uma escola. Mesmo que a estrutura entre duas igrejas possa ser distinta, há um padrão de organização que possibilita sua identificação como tal. Embora, haja uma regra organizacional, pela variedade do contexto, pelos anseios dos elementos, ou pela finalidade comum de algum agrupamento pode diferenciar seu comportamento em relação a outro agrupamento. Segundo Katz; Kahn (1987, p. 30-31) expressam como de fundamental importância conhecer o meio social no qual os indivíduos se organizam, além disso, reconhecer a ênfase sobre o indivíduo, como elemento sistêmico que possui ingerência sobre a finalidade. De tal modo, que regras ou categorias epistemológicas criadas para estudar os sistemas como organizações sociais, quando aplicados a sistemas sociais não possuem, necessariamente, efeito único.

A capacidade humana de estabelecer referências e valorar materiais físicos ou abstratos, advém das condições particulares pertencentes a cada indivíduo. Também, a construção de significados e experiências são particulares, Capra e Luisi (2014, p. 393) indicam que aquilo “que as pessoas percebem depende de quem elas são como indivíduos”. Ou seja, uma informação, um símbolo ou um dado pode ser percebido de forma distinta pelos indivíduos, pois as características culturais definem o significado que será dado as mensagens recebidas.

Assim, a capacidade autônoma dos elementos requer que uma ação interventiva, para organizações sociais, promova o equacionamento entre metas e finalidades dos indivíduos e as metas e finalidades das organizações às quais está ligado. Embora, esta seja uma incomensurável possibilidade de redução de erros e aumento de acertos nas ações públicas e medidas de atuação dirigida a sistemas sociais.

Desta maneira, nos casos em que as relações de poder estabelecidas almejam o estabelecimento de novos comportamentos, ou a renovação da denominada “cultura organizacional”, é válido compreender que os “sistemas vivos” pensam, sentem e constroem significados. Assim, uma intervenção imposta corre risco de ser rejeitada, pela tendência à recusa por imposições, então, “coordenação e controle, tornam-se fins por si mesmos, e não meios para um fim” (KATZ; KUHN, 1987, p. 42). Certamente, a atualidade com a impermanência das regras, valores e a flexibilidade de relações suplantam desafios aos atores e aos profissionais que proponham qualquer atuação com sistemas sociais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt; DONSKIS, Leonidas. Cegueira moral; a perda da sensibilidade na modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

CAPRA, Fritjof; LUISI, Pier Luigi. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014.

GUARESCHI. Pedrinho. Ideologia . In: STREY, Marlene Neves. et. al. Psicologia socia. contemporânea. 4ª. ed.  Petrópolis: Vozes, 2000.

KATZ, Daniel; KAHN, Robert L. Psicologia das organizações sociais. 3ª. ed. São Paulo: Atlas, 1987.

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Gestão de Conflito: Percepções Individuais e os Interesses Comuns Negociáveis

O presente estudo abordará as construções coletivas e culturais dos valores e normas sociais, cujo conteúdo impacta nas escolhas de cada indivíduo. O intuito está em fornecer subsídios a negociadores e operadores de outras ferramentas de diálogo, para que possam ampliar o entendimento, sobretudo, em relação ao ser humano e suas características. Visto que, quaisquer que sejam as técnicas e ferramentas a serem empregadas estarão dirigidas a pessoas e suas emoções. Para além de uma causa ou um conflito, é importante perceber que são negociados interesses das gentes, dos seres humanos.

Desde a era primitiva, o ser humano se reuniu em agrupamentos como forma de proteção dos filhotes, garantia de segurança e sobrevivência. No convívio grupal, exigiu-se organização para coleta e distribuição de alimentos. Costumeiramente, como forma de orientação desses processos os tribais estabeleceram regras de grupo e de

sobrevivência por hábitos praticados e repetidos. As práticas repetidas se padronizaram e se automatizaram como elementos pertencentes aos ritos e incorporaram uma base como tradição. Os modelos comportamentais que se

constituem cultura humana são observados por Capra e Luisi (2014, p. 307), que lançam apontamentos sobre as características humanas como formas aprendidas culturalmente. Pautando-se nos estudos sobre o genoma humano que demonstram a ligação do hominídeo não somente aos símios, mas a todas as espécies vivas. Dessa

maneira, a construção dos atributos que definem os humanos pode ser descrita, principalmente, pela habilidade humana de registrar imagens e assim, reproduzi-las.

Segundo Bohm (2005, p.38) a base das condições que permitem ao ser humano opinar, valorar ou mesmo planejar são assegurados no conteúdo registrado na memória, que inclui experiências ou observações que possam ter sido absorvidas por quaisquer dos sentidos. Isso permite-nos partilhar valores, bens e emoções, de tal

maneira que ocorre o reconhecimento da pessoa através da outra pessoa seja nas ações, na fala ou no planejamento. Os sentimentos e os valores comportamentais são transmitidos pelas gerações, garantindo a permanência de práticas culturais assimiladas e reproduzidas, seja por ensinamento ou de modo tácito.

Através da comunicação repassamos as tradições, costumes, culturas e o estabelecimento de normas de convívio, assegurando a continuidade da espécie humana. No espaço comum, os humanos compartilham anseios comunitários e expressam, também, desejos individuais. Dessa maneira, também são necessárias regras de organização de partilha de bens, não apenas dos recursos alimentícios, emergem assim as relações de conflitos e ocorrem as formulações de negociações ou métodos de troca. Com o estabelecimento tradicional destes hábitos, as diversas gerações passaram a adaptar as suas condições e necessidades com o ordenamento da negociação, ao ponto desta se dar de modo naturalizado no convívio entre os iguais. Neste ínterim pode ocorrer momento em que alguma negociação fuja à naturalidade, de modo que afete a segurança, a pertença ou individualidade de cada um dos envolvidos na causa. Para Fisher, Ury e Patton (1994, p. 91), a negociação reúne interesses comuns que ficam latentes e podem, de algum modo, se mostrarem velados.

Os autores expressam que no momento da condução da negociação é fundamental que esses interesses comuns sejam preservados e vistos como oportunidades de cooperação. Servirão deste modo, como um norteador para o planejamento de ações futuras, pois é o resultado que se almeja na negociação. Os interesses, também, podem ser compreendidos, como fruto de experiências humanas, pois estão imbuídos de valores, crenças e culturas.  Considerando que esses elementos emergem das relações do agrupamento humano e permeiam o campo da

individualidade, é necessário que no momento de uma negociação, caso esta seja conduzida por um terceiro imparcial, que se tenha atenção para a validação desses elementos. Isso será fundamental não apenas para o desenvolvimento do processo, mas para que as pessoas envolvidas possam extrair de modo amplo, benefícios da negociação e aprendizagem para tomadas de ação em situações futuras.

Como mencionado, é pela capacidade humana de estabelecer crenças e culturas se assentam na habilidade de reter imagens, assim, a solidificação de ideias, opiniões, atitudes e anseios, se dão sobre experiências vivenciadas ou observadas. Então, ao tratar os interesses mútuos no momento da negociação, é fundamental, que o operador

da técnica possa ter clareza de sua prática de modo a validar e respeitar as construções e significados individuais.

Inclusive, considerando que a linguagem humana, embora seja forma de comunicar algo ao meio, pode ser adaptada aos diferentes contextos. Assim, quando um interesse a ser negociado é comunicado, descrito ou identificado, está relacionado a um contexto. Para Andersen (2002, p. 54) cada pessoa possui uma percepção da

realidade a qual pertence. Assim, embora possa-se considerar que pessoas oriundas de um mesmo agrupamento social tenham a mesma tendência experimental, há um conteúdo que reflete significado único. Portanto, ao se oferecer o desenvolvimento de trabalho ou ferramenta no trato de conflitos, requer que se tenha compreensão de que pessoas são fruto de relações sociais e formadas por conteúdos adquiridos na coletividade, mas que suas percepções individuais sobre os fatos motivam seus sentimentos e ações, Com o olhar atento para as individualidades e percepções dos envolvidos nas questões, o operador da técnica negocial pode almejar o alcance de resolução amistosa que vise a minimização de danos, principalmente, nas relações continuadas no tempo.

Como visto, as práticas de negociação terão variedade no sentido de cada interpretação dada pelo aspecto cultural de cada parte envolvida no processo, inclusive do próprio operador da técnica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDERSEN, Tom. Processos reflexivos.2ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2002.

BOHM, David. Diálogo: Comunicação e Redes de Convivência. Ed. Palas Athena, 2005

CAPRA, Fritjof; LUISI, Pier Luigi. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada

e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014.

FISHER,Roger ; URY,William ; PATTON,Bruce . “Como chegar ao sim: negociação

de acordos sem concessões”. Projeto de Negociação da "Harvard Law School";

tradução de Vera Ribeiro & Ana Luzia Borges- 2ª ed. Rio de Janeiro : Imago Ed.,1994.

 

FABIANA LANKE

Possui graduação em Serviço Social pela Universidade do

Contestado (2007), especializada em Gestão de Políticas

Públicas (UNOPAR) e Metodologia do Ensino Superior

(FAE); Mestranda em Sistemas Alternativos de Resolução

de Conflitos (UNLZ/Argentina) e Mestranda em Direito

(UNIRIO). Possui experiência como assistente social na

Prefeitura Municipal de Mafra-SC. Com atuação na área

de Políticas Públicas, com ênfase em Políticas Sociais,

principalmente em: Assistência Social, Política do Idoso,

Segurança Alimentar e Nutricional e Saúde Mental e

controle social (conselhos de direitos). Atua como

Mediadora de Conflitos no Tribunal de Justiça do Estado

do Rio de Janeiro – RJ e junto a Associação Práxis

Sistêmica, www.praxisistemica.com.br.

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A Doutrinação

Aprendemos desde pequenos que temos nosso espaço no mundo. Um lugar destinado ou um lugar conquistado. Buscamos, até mesmo, registrar lugares. Um ponto em frente ao espelho na academia de ginástica ou um assento, aquele assento, no transporte público.

Se permanecermos no “nosso lugar”, dificilmente ampliamos a rede de contato. O que não percebemos é que a cômoda tendência, a lógica da delimitação do “seu lugar” ou “meu lugar”, não passa de ilusão. Sabemos que a realidade é de constante impermanência e, como dito na Antiguidade, “Tudo flui”, será mesmo que há “meu” ou “seu” lugar? A ideia de demarcação do espaço, inclusive no espaço público, poderia ser doutrinação?
Em nome da “ordem para o progresso” a doutrinação pode facilitar a aceitação do status quo: após marcarmos nosso lugar à mesa, no sofá ou na cama, passamos a estabelecer “nosso lugar” na cidade e na sociedade. Talvez, sob a retórica de organização.

Assim, não nos damos conta de que, enquanto defendemos “nosso lugar” como único e intransferível, não reconhecemos a necessidade de rever posições, rever argumentos, e perdemos a oportunidade de construir espaços e relações sem “lugares” pré-determinados. Com lugares que podem se reorganizar de acordo com as necessidades do momento.
Nessa proposta de desvinculação com o “nosso lugar”, a ordem e desordem, são constantes, porém com propósito criador, construtivo. Nesse contexto, a ideia de “pintar casas da Rocinha para melhorar a aparência do local”, é inválida. Por conferir, “maquiagem” à realidade social e reforçar a delimitação de lugares e fronteiras. Reforçar o isolamento e distinção entre “o lugar” do privilégio e “o lugar” da necessidade. Apenas, “maquiagem”.

Se sairmos dessa relação binária, entre o “meu lugar” e o “seu lugar” podemos ampliar as reflexões e estabelecer múltiplas conexões, ocupar um lugar hoje e outro amanhã. Sem doutrina, mas com coerência, respeito e responsabilidade, para construir uma sociedade igualitária e libertária. Uma sociedade na qual mulheres e homens podem ocupar o lugar que quiserem. Sem limitação e sem doutrinação.

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Empoderamento ou autonomia?

Atualmente a ideia de empoderamento das pessoas vem sendo disseminada, especialmente quando se trata da ação política das chamadas “minorias”. Este movimento ocorre impulsionado pelos diversos meios de comunicação e redes sociais. Desta maneira o empoderamento ou empowerment tem ocupado discussões em Conselhos de Direitos, Fóruns de debates e Conferências de Políticas Públicas, resultando em conteúdo de orientação e manuais de prática profissional.

O termo empoderamento, surge nos anos 70, a partir de um movimento chamado Women In Development (WID) – Mulheres no Desenvolvimento:
“A noção de empoderamento está fortemente vinculada à noção de “poder sobre”, de controle sobre os outros e sobre recursos. Portanto para que houvesse um empoderamento seria necessário inverter a situação de poder. Quem o detinha, deveria então ser destituído dessa posição, que passaria a ser ocupada pelas pessoas empoderadas, naquele momento, as mulheres. Essa noção de poder traz a ideia de que para uns ganharem poder outros terão que perder”

Nesta perspectiva, compreende-se que esta lógica de empoderamento se dá quando alguém o toma de outro. Para o filósofo Foucault as relações de poder instaladas na sociedade, vão para além da dinâmica de Estado e cidadão, como geralmente pensamos, elas são reproduzidas na forma geral da lei, no corpo do indivíduo, nos gestos e comportamentos. Assim, relaciona-se invisivelmente na vida social, de maneira que todos órgãos ou pessoas com papéis de autoridades passam a ceder espaço para as dinâmicas ocultadas, ideologicamente criadas no cotidiano da sociedade. Para Sodré a relações de poder são múltiplas e se mostram na vida social, religião, doutrina, lei, pedagogia e demais espaços para sua vivificação. Portanto, há que se considerar a efetiva presença do referencial ideológico do sistema de produção sendo norteador das ações práticas, políticas disseminadas na sociedade.  Dentre os princípios de empoderamento das mulheres estabelecido pela ONU, encontram-se “Apoiar empreendedorismo de mulheres e promover políticas de empoderamento das mulheres através das cadeias de suprimentos e marketing”, e demais itens que focam prioritariamente garantias de competitividade no mercado de trabalho, que é fundamental para manter o giro da cadeia produtiva do sistema capitalista com ampla oferta de mão de obra.

Sabe-se que o poder financeiro tende a garantir apenas melhores condições de consumo e formas de suprir as necessidades mínimas, mas estas condições por si não alteram os modelos culturais ou as dinâmicas sociais que se revelam no cotidiano.  Embora, dentre os princípios estabelecidos encontre-se, também, a garantia de igualdade de gênero, percebe-se que não trata especificamente do desenvolvimento pessoal da mulher como “ser”, ou um desenvolvimento como “fim em si mesmo”. Mas, na expectativa da manutenção do modelo social vigente, que si é segregador. A sociedade capitalista lança o indivíduo como objeto, representando-o, unicamente, como força de trabalho vendável ao mercado, privando-o de si, de sua consciência e da percepção das relações que o envolvem e o moldam.

Ademais, há apropriação intensa da temática do empoderamento como ferramenta de marketing, presente nas mais variadas campanhas publicitárias, especialmente as relacionadas ao comércio de cosméticos. Típicos da sociedade atual – sociedade do consumo – com modelos estéticos que extrapolam os princípios de cuidado pessoal, saúde e bem-estar, propagando aspectos de beleza padronizada. Ou ainda, o empoderamento mostra-se nos chamados “programas femininos” – aqueles – com foco em culinária, beleza e cuidados com a casa, dizendo-se inovadores e condicionando cotidianamente o público para a repetição de padrões. Então, faz-se necessário refletir sobre a real intenção da ideia de empoderar, e da diferença material objetiva que este termo promove.

Perante a Lei Maior, todo cidadão goza de igualdade, sabe-se que em nossa “sociedade de classes” essa realidade é dividida. Compreende-se então, que o debate de empoderamento que tende a oferecer poder de um grupo ou categoria sobre outra pode acentuar a diferenciação e a segregação dos indivíduos, afastando-os da defesa da igualdade de direitos.

Conceitualmente, o Conselho Nacional de Justiça apresenta no Manual de Mediação que empoderamento se refere ao: “Encorajamento dado pelo mediador a cada uma das partes, para que estas tenham consciência de sua capacidade de resolver seus próprios conflitos e ganhem autonomia. Ao final porque o empoderamento consiste em fazer com que a parte descubra, a partir das técnicas de mediação aplicadas no processo, que tem a capacidade ou poder de administrar seus próprios conflitos.”

Quando uma pessoa se torna consciente de suas ações, surgem novas possibilidades. Aquele que é provido de sua identidade, percepção de si, e de suas relações, configura-se como ser autônomo. A autonomia permite ao indivíduo, exercer variadas atividades, perceber seu espaço e suas possibilidades convencido de si e ciente de seu princípio da liberdade. Assim o indivíduo pode se permitir a avançar e construir relações sem a necessidade de agir sobre o outro, e sim, com o outro.

Este processo de tomada de consciência e desvelamento de suas potencialidades é o foco de ação da Constelação Familiar, que segundo Franke é:

”Traz à luz, de forma rápida e precisa, as dinâmicas que ligam o cliente de uma forma disfuncional ao seu sistema de referência, que o limitam em suas possibilidades de ação e desenvolvimento pessoal, impedindo-o de estruturar a sua vida de uma forma positiva”.

Pode ser a constelação familiar, ferramenta para a percepção da realidade permeada pela desigualdade social, que assola profundamente os variados ambientes. Possibilitando, que então a partir da verificação real das condições, possa agir, em nome de si e da coletividade. Por esta razão entende-se que a Constelação Familiar – pode colaborar para que a pessoa, desvele-se autônoma, com identificação de si e de seus direitos para exigi-los, com consciência.

Segundo Amartya Sen, a liberdade humana é atingida pelo desenvolvimento da pessoa e suas capacidades. Então, os diversos setores da sociedade devem se articular para que sejam garantidas capacidades para que as pessoas possam tomar de decisão, opinar e viver livremente. Minimizando, assim, a presença de interlocutores, mas que seja possível falar por si e atuar coletivamente na exigência de políticas públicas que atendam as facetas da questão social.

Frente a realidade posta, o empoderamento, por vezes, pode se fazer aparente, quando as condições materiais objetivas da pessoa empoderada (para um ato específico) não mudam.  Por essa razão, refletir sobre autonomia é um compromisso posto aos diversos trabalhadores que atuam com Constelação Familiar, para que suas ações junto às pessoas visem a construção de uma nova sociedade, justa, equânime e solidária. Uma sociedade autônoma sem maiorias ou minorias, uma sociedade de seres humanos livres.

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