A autonomia da vontade nas constelações familiares e nas mediações

Texto de Rachel Serodio de Menezes e Juliana Lopes Ferreira para Coluna Práxis na Empório do Direito

A busca pela autonomia das partes não é fonte nova da legislação brasileira. Desde o Código Civil de 1916 o contrato faz lei entre as partes e desde o Código de Processo Civil de 1975 as partes podiam convencionar cláusulas de eleição de foro. A lei civil de 2002 aumentou o rol dos negócios civis típicos e ampliou as possibilidades dos negócios civis atípicos.

Com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015 que se teve o maior avanço do princípio da autonomia da vontade, qual seja, a possibilidade de se realizar negócios processuais típicos não apenas como a cláusula de eleição de foro, mas ajustar prazos não peremptórios, definir suspensão de processos e até mesmo desistir de recursos.

Nas resoluções consensuais de conflitos esse princípio é uma máxima fundamental. Dispõe o código de ética dos conciliadores e mediadores judiciais que seja assegurada as partes “(…) uma decisão voluntária e não coercitiva, com liberdade para tomar as próprias decisões durante ou ao final do processo e de interrompê-lo a qualquer momento”(1) e tal diretriz repete-se na Lei de Mediação quando esta dispõe em seu artigo 2°, §2° que “ninguém será obrigado a permanecer em procedimento de mediação” (2).

Segundo DIDIER, o também chamado princípio do autorregramento da vontade é “corolário da liberdade”(3), sendo considerado o princípio mais importante sobre o tema. Dessa forma, tem-se a liberdade da pessoa envolvida no litígio como princípio basilar da mediação, seja na tomada de decisão pela melhor solução para seu problema, seja na definição das regras procedimentais ou até mesmo de seu encerramento.

Embora as partes que estejam envolvidas em conflitos familiares judicializados sejam obrigadas a comparecerem à sessão de mediação, não devem ser constrangidas pelos auxiliares de justiça a alcançarem um acordo, quiçá permanecerem no processo da mediação, que pode ser encerrado a qualquer tempo. O não comparecimento à audiência é considerado “ato atentatório à dignidade da justiça’. Nesse sentido, prevê o artigo 334 em seu §8º:

“O não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado.”

BUENO explica que o mesmo enunciado se aplica à mediação, em que pese o silêncio do dispositivo. Para o autor, a medida demonstra a seriedade com a qual a legislação trata do assunto bem como “enfatiza a importância de autor e réu manifestarem-se de forma inequívoca sobre seu eventual desinteresse” (4).

De igual forma aplica-se à constelação familiar, na qual a presença das pessoas envolvidas em conflitos judicializados na sessão de constelação é de caráter voluntário, respeitando a autonomia das partes.

A constelação familiar é uma abordagem sistêmica criada pelo alemão Bert Hellinger que ao conhecer o trabalho da assistente social Virginia Satir percebe a oportunidade de tratar questões individuais por meio de representações familiares, tradução literal do nome da técnica em alemão “Familienaufstellung”, que perdeu parte do seu sentido ao ser traduzida do inglês para o português, ganhando o nome de Constelação (5).

Não deve ser considerada uma psicoterapia, mas sim uma vivência terapêutica que pode permitir que aquele que busca o judiciário para a resolução de um conflito se perceba através de dinâmicas ocultas nas relações familiares (6).

O amparo legal que possui as constelações familiares no âmbito jurídico se dá pelo artigo 3º, § 3º, do CPC, que dispõe: “A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial” bem como no artigo 694, do CPC: “Nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação” (3).

A constelação é uma ferramenta utilizada na busca da autonomia existencial daqueles que batem à porta do Judiciário para a solução de seus conflitos, já que oferece instrumentos para não repetição de crenças e comportamentos dos sistemas familiares, permitindo que aquele individuo desenvolva e enxergue suas potencialidades e autonomia para definir dentro de uma contenda, em conjunto, as melhores decisões, sem a necessidade de ingerência do Estado Juiz.

Assim, o Poder Judiciário incorpora em seu campo de atuação todas as práticas que facilitem a resolução de conflito através da construção do consenso, como a conciliação, a mediação e as constelações familiares.

Em pesquisa recente realizada pela socióloga Barbara Mourão sobre o tema, no fórum da Regional da Leopoldina – Tribunal do Estado do Rio de Janeiro, a visão do judiciário foi positiva e melhorou para 70,4% dos participantes da prática no aspecto da consciência de não precisar de uma autoridade estatal para decidir seus conflitos (7). Junto a isso está atrelada aos participantes a percepção de um judiciário mais humanizado e preocupado com a condição emocional da história de vida de cada um dos integrantes.

As constelações familiares, se desenvolvidas com metodologia de trabalho e de pesquisa e praticadas com a observação da laicidade estatal e dos direitos constitucionais fundamentais, configuram um campo legítimo de trabalho, colocando-se à serviço das pessoas em uma nova estrutura de justiça, cuidadora e solidária.

O grande desafio atualmente é enxergar a abordagem como política pública para tratamento de conflitos e justamente a necessidade de se esclarecer seus propósitos alicerçados no pensamento sistêmico e nos direitos humanos, representando a abordagem um espaço que demanda mais investigações e pesquisas.

 

REFERÊNCIAS

 

  • Resolução n° 125/2010 do Conselho Nacional da Justiça (CNJ). Diário de Justiça Eletrônico.° 39 (01 mar. 2011), p.2-15. Disponível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=156.
  • Lei n.° 13.140/2015. Diário Oficial da União, Seção 1. (29 jun. 2015), p.4. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.ht
  • BUENO, Cassio Scarpinella – Manual de Direito Processual Civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC, de acordo com a Lei 13.256, de 4-2-2016. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 331.
  • DIDIER JR., Fredie – Cit. Vol.1. Salvador: Juspodvim, 2017, p. 311.
  • OLIVEIRA, Décio; OLIVEIRA, Wilma. Por quê o nome constelações? Instituto Desenvolvimento Sistêmico para a Vida (IDESV). [Consult. 13 nov. 2019]. Disponível em http://constelacaodeciowilma.com.br/index.php/perguntas-frequentes
  • TREDINNICK, André – Delineamentos democráticos da Constelação Familiar no Poder Judiciário. In Anais do Seminário Nacional de Constelações Familiares na Justiça: Práticas de Constelação Familiar no Judiciário, Rio de Janeiro, 2017. Rio de Janeiro: Práxis Sistêmica, 2017.
  • TREDINNICK, André; FERREIRA, Juliana – Conversando sobre Constelação Familiar na Justiça, São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019.

 

Autoras

 

Rachel Serodio de Menezes

Advogada. Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL). Especializada em direito civil e processo civil pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV Rio). Consteladora familiar pela Associação Práxis Sistêmica. Membro da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Rio de Janeiro (OAB/RJ). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

 

 

 

Juliana Lopes Ferreira

Advogada. Mestra em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Conciliadora Judicial pelo TJRJ. Mediadora pelo Mediare, TJRJ e NUMEC/UFRJ. Consteladora sistêmica treinada por Ruth Barbosa. Membro da Associação Práxis Sistêmica, www.praxisistemica.com.br.

Fonte: Empório do Direito

 

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Empoderamento ou autonomia?

Atualmente a ideia de empoderamento das pessoas vem sendo disseminada, especialmente quando se trata da ação política das chamadas “minorias”. Este movimento ocorre impulsionado pelos diversos meios de comunicação e redes sociais. Desta maneira o empoderamento ou empowerment tem ocupado discussões em Conselhos de Direitos, Fóruns de debates e Conferências de Políticas Públicas, resultando em conteúdo de orientação e manuais de prática profissional.

O termo empoderamento, surge nos anos 70, a partir de um movimento chamado Women In Development (WID) – Mulheres no Desenvolvimento:
“A noção de empoderamento está fortemente vinculada à noção de “poder sobre”, de controle sobre os outros e sobre recursos. Portanto para que houvesse um empoderamento seria necessário inverter a situação de poder. Quem o detinha, deveria então ser destituído dessa posição, que passaria a ser ocupada pelas pessoas empoderadas, naquele momento, as mulheres. Essa noção de poder traz a ideia de que para uns ganharem poder outros terão que perder”

Nesta perspectiva, compreende-se que esta lógica de empoderamento se dá quando alguém o toma de outro. Para o filósofo Foucault as relações de poder instaladas na sociedade, vão para além da dinâmica de Estado e cidadão, como geralmente pensamos, elas são reproduzidas na forma geral da lei, no corpo do indivíduo, nos gestos e comportamentos. Assim, relaciona-se invisivelmente na vida social, de maneira que todos órgãos ou pessoas com papéis de autoridades passam a ceder espaço para as dinâmicas ocultadas, ideologicamente criadas no cotidiano da sociedade. Para Sodré a relações de poder são múltiplas e se mostram na vida social, religião, doutrina, lei, pedagogia e demais espaços para sua vivificação. Portanto, há que se considerar a efetiva presença do referencial ideológico do sistema de produção sendo norteador das ações práticas, políticas disseminadas na sociedade.  Dentre os princípios de empoderamento das mulheres estabelecido pela ONU, encontram-se “Apoiar empreendedorismo de mulheres e promover políticas de empoderamento das mulheres através das cadeias de suprimentos e marketing”, e demais itens que focam prioritariamente garantias de competitividade no mercado de trabalho, que é fundamental para manter o giro da cadeia produtiva do sistema capitalista com ampla oferta de mão de obra.

Sabe-se que o poder financeiro tende a garantir apenas melhores condições de consumo e formas de suprir as necessidades mínimas, mas estas condições por si não alteram os modelos culturais ou as dinâmicas sociais que se revelam no cotidiano.  Embora, dentre os princípios estabelecidos encontre-se, também, a garantia de igualdade de gênero, percebe-se que não trata especificamente do desenvolvimento pessoal da mulher como “ser”, ou um desenvolvimento como “fim em si mesmo”. Mas, na expectativa da manutenção do modelo social vigente, que si é segregador. A sociedade capitalista lança o indivíduo como objeto, representando-o, unicamente, como força de trabalho vendável ao mercado, privando-o de si, de sua consciência e da percepção das relações que o envolvem e o moldam.

Ademais, há apropriação intensa da temática do empoderamento como ferramenta de marketing, presente nas mais variadas campanhas publicitárias, especialmente as relacionadas ao comércio de cosméticos. Típicos da sociedade atual – sociedade do consumo – com modelos estéticos que extrapolam os princípios de cuidado pessoal, saúde e bem-estar, propagando aspectos de beleza padronizada. Ou ainda, o empoderamento mostra-se nos chamados “programas femininos” – aqueles – com foco em culinária, beleza e cuidados com a casa, dizendo-se inovadores e condicionando cotidianamente o público para a repetição de padrões. Então, faz-se necessário refletir sobre a real intenção da ideia de empoderar, e da diferença material objetiva que este termo promove.

Perante a Lei Maior, todo cidadão goza de igualdade, sabe-se que em nossa “sociedade de classes” essa realidade é dividida. Compreende-se então, que o debate de empoderamento que tende a oferecer poder de um grupo ou categoria sobre outra pode acentuar a diferenciação e a segregação dos indivíduos, afastando-os da defesa da igualdade de direitos.

Conceitualmente, o Conselho Nacional de Justiça apresenta no Manual de Mediação que empoderamento se refere ao: “Encorajamento dado pelo mediador a cada uma das partes, para que estas tenham consciência de sua capacidade de resolver seus próprios conflitos e ganhem autonomia. Ao final porque o empoderamento consiste em fazer com que a parte descubra, a partir das técnicas de mediação aplicadas no processo, que tem a capacidade ou poder de administrar seus próprios conflitos.”

Quando uma pessoa se torna consciente de suas ações, surgem novas possibilidades. Aquele que é provido de sua identidade, percepção de si, e de suas relações, configura-se como ser autônomo. A autonomia permite ao indivíduo, exercer variadas atividades, perceber seu espaço e suas possibilidades convencido de si e ciente de seu princípio da liberdade. Assim o indivíduo pode se permitir a avançar e construir relações sem a necessidade de agir sobre o outro, e sim, com o outro.

Este processo de tomada de consciência e desvelamento de suas potencialidades é o foco de ação da Constelação Familiar, que segundo Franke é:

”Traz à luz, de forma rápida e precisa, as dinâmicas que ligam o cliente de uma forma disfuncional ao seu sistema de referência, que o limitam em suas possibilidades de ação e desenvolvimento pessoal, impedindo-o de estruturar a sua vida de uma forma positiva”.

Pode ser a constelação familiar, ferramenta para a percepção da realidade permeada pela desigualdade social, que assola profundamente os variados ambientes. Possibilitando, que então a partir da verificação real das condições, possa agir, em nome de si e da coletividade. Por esta razão entende-se que a Constelação Familiar – pode colaborar para que a pessoa, desvele-se autônoma, com identificação de si e de seus direitos para exigi-los, com consciência.

Segundo Amartya Sen, a liberdade humana é atingida pelo desenvolvimento da pessoa e suas capacidades. Então, os diversos setores da sociedade devem se articular para que sejam garantidas capacidades para que as pessoas possam tomar de decisão, opinar e viver livremente. Minimizando, assim, a presença de interlocutores, mas que seja possível falar por si e atuar coletivamente na exigência de políticas públicas que atendam as facetas da questão social.

Frente a realidade posta, o empoderamento, por vezes, pode se fazer aparente, quando as condições materiais objetivas da pessoa empoderada (para um ato específico) não mudam.  Por essa razão, refletir sobre autonomia é um compromisso posto aos diversos trabalhadores que atuam com Constelação Familiar, para que suas ações junto às pessoas visem a construção de uma nova sociedade, justa, equânime e solidária. Uma sociedade autônoma sem maiorias ou minorias, uma sociedade de seres humanos livres.

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